sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

A família nas Escrituras

Por: Francisco Rubeaux, omi

No domingo 26 de dezembro vamos celebrar a festa da Sagrada Família. É uma oportunidade para refletir um pouco sobre o valor da família, ainda mais nos nossos dias em que ela é tão fragmentada. Mesmo que as nossas famílias hoje serão bem diferentes da família de Nazaré, os seus valores permaneçam. Este pequeno estudo será dividido em duas partes para não torná-lo muito pesado... Boa reflexão.

1. A Instituição familiar.

Quando olhamos para a família, podemos olhar de pontos de vista diferentes. Assim aparecem problemas de ordens diferentes: ordem econômica (salários baixos que obrigam os maridos a se ausentar da família para procurar empregos, menores abandonados, migrações, fome...) ordem moral (infidelidade, violência doméstica, prostituição, sexo como mercadoria...) ordem política (não participação na vida da comunidade, machismo, divisões na família)

ordem religiosa (amigados, sem vivência religiosa, seitas entrando nas famílias, despreparo para o matrimônio...)

A família é uma instituição social por que ela é reconhecida juridicamente pela sociedade (cartório, Igreja, casamento oficial...), ela faz parte dos elementos constitutivos da organização social.

Mas uma instituição social não nasce de repente, nem passa a existir por força de lei .É o resultado de uma evolução histórica dentro de uma determinada sociedade.. Uma vez reconhecida e aceita como instituição social, ela passa a ter influência e até força sobre os indivíduos, exerce poder sobre eles. As instituições sociais acabam existindo independentemente da vontade individualizada, de cada cidadão. Mesmo que não se queira que seja assim, é assim porque se trata de um produto social criado historicamente.

Assim, como qualquer instituição social, a família monogâmica não apareceu do nada. Evoluiu-se de outras formas de organizações gâmicas no decorrer da História e no desenvolvimento da complexidade social. A família tal como a conhecemos é conseqüência das formas de organização desenvolvidas pelos homens em seu desenvolvimento socio-econômico. O agrupamento representado pela família é uma necessidade decorrente e determinada pela maneira com a qual o homem se organiza para se sustentar.

Assim houve e há diversos modelos de família.

2. Modelos de Famílias.

Se considerarmos a História da Humanidade em três etapas teremos três tipos de famílias, correspondente a etapas diferenciadas na evolução do agrupamento familiar.

Modelo selvagem (da palavra selva, floresta...). A economia é baseada na caça, na pesca, na colheita de frutos naturais... os seres humanos são nômades à procura de recursos, não há propriedade...o agrupamento familiar é caracterizado pela poligamia generalizada, baseada na consangüinidade. O agrupamento familiar se dá por grupos a partir do sangue. Certos grupos de homens pertencem por inteiro a grupos de mulheres. Trata-se de uma pertença recíproca.

Modelo barbárie (a palavra significa em oposição à etapa posterior “o que não tem civilização”...). A economia é a agricultura de subsistência, a domesticação e criação de animais, a fundição do ferro. Com o cultivo da terra surge a irrigação. O agrupamento familiar é caracterizado pela poligamia com os preferidos. O homem e a mulher começam a habitar temporariamente com os seus preferidos. O homem vive com uma mulher de maneira tal que não lhe é exigido fidelidade. O homem tem direito ao adultério, mas a mulher, não. Os filhos pertencem somente a mãe, mas é preciso que a comunidade saiba de quem ele é o filho.

Modelo da civilização ( da palavra civitas, a cidade.) Este modelo começa mais ou menos no IVº século antes de Cristo. Agora as pessoas têm habitação fixa, são sedentários. O agrupamento familiar é caracterizado pela monogamia que se originou a partir de diversos fatores: consangüinidade (necessidade de reconhecer não somente a mãe, mas também o pai por questão de herança) procriação (necessidade de garantir herdeiros para os bens acumulados) propriedade (necessidade de assegurar a privacidade da propriedade.). Não se casa por amor, mas apenas para garantir favores políticos ou econômicos. O sexo passa a ser mercadoria e reforça o poder do macho. A mulher torna-se escrava do homem.

Existem vários tipos de famílias neste modelo de civilização:

Família aristocrática, caracterizada pela posse de muitas riquezas e grandes propriedades rurais. Os títulos de nobreza servem de elo familiar. O homem tem o poder e a função social da mulher é reunir a família.

Família burguesa, que nasce nos “burgos” ou pequenas povoações fora do domínio dos senhores da terra. Sua base econômica é o comércio, e as grandes indústrias. A monogamia é ligada á riqueza e à propriedade, o elo de ligação entre os seus membros é a economia. O homem reproduz dentro da família o poder do Estado

família proletária, formada sobretudo de operários, o homem trabalha e a mulher fica em casa. O econômico desmentela a família: busca de trabalho, poucos recursos geram as brigas e desentendimentos.

família camponesa, vive no campo e trabalha a terra para se manter. Pai e mãe estão no campo mas os filhos são arrancados da terra para fornecer a mão de obra à cidade. Eles passam assumir a vida da família proletária.

Hoje, assistimos a uma profunda mudança das estruturas familiares.A mulher entrou no mercado do trabalho, o marido toma conta da casa e das crianças. A mulher ganha mais do que o homem. Mulheres preferem viver sozinhas com seus filhos, se tornam independentes. A mulher se liberta do jugo masculino, o pai não dita mais as regras em casa. Aqui intervêm os meios de comunicação social, criando um novo modelo de família segundo as necessidades do novo sistema econômico. E mais uma vez a necessidade de “re-arrumação” do poder começa a ditar “novas” formas de agrupamento familiar.

Na Bíblia encontramos uma parte desta história, e no mesmo tempo encontramos os valores que a fé no Deus Único apresenta na realização da família. Valores que permanecem, os valores da família segundo o Projeto de Deus, qualquer que seja o tipo de agrupamento familiar que a sociedade impõe às pessoas. Mudam os modelos, as formas, continuam os valores. Vamos agora passar a um estudo do tema da família nas Escrituras.

Neste nosso estudo privilegiaremos três momentos que nos parecem mais característicos: no Antigo Testamento, o tempo da Monarquia e o tempo do Pós-Exílio; no Novo Testamento, o tempo das Primeiras Comunidades. Por fim consideraremos a Família no contexto do Reino de Deus.

3. A Família no tempo da Monarquia em Israel.

3.1. A realidade social:

Os Profetas nos revelam que a vida familiar anda bastante abalada: Miquéias 7, 5-6; Jeremias 9,3-5; Oséias 1,2 e 2,4-7.

Está acontecendo a desestruturação da família: Miquéias 2,1-2. Isso acontece por causa do sistema dos Reis (o Direito do Rei) de sua maneira de organizar o povo. De fato podemos aqui lembrar o direito do Rei (1º Samuel 8, 10-18). Com a Monarquia mudou o sentido e a finalidade da relação homem-mulher, e da família em geral. Existem viúvas e órfãos (pessoas sem família) que os Profetas devem defender: Isaías 1,17; Jeremias 7,6; e 22,3. A Monarquia só é interessada no trabalho do homem e na função reprodutiva da mulher, de uma maneira como de outra se trabalha em função do sistema, fornecendo produção cada vez maior para alimentar o comércio e mão de obra barata como força militar para sustentar o novo sistema social.

3.2 A memória subversiva:

Diante desta situação, os Profetas e as pessoas que, em Israel, guardam acesa a chama do projeto de Deus, lembram do tempo passado, lembram do Decálogo (Constituição primeira e fundamental do Povo). Estas pessoas tentam explicar porque existe tal situação, apesar de Javé ser o Deus que libertou da terra do Egito, da casa da servidão.

O DECÁLOGO: Êxodo 20, 12-14-17

Deuteronômio 5, 16-18-21.

Está reafirmado que a família é a célula fundamental da sociedade: pai e mãe são os primeiros líderes que devem ser respeitados, só assim haverá vida. O adultério é proibido porque mostra não só o desrespeito como a desigualdade entre homem e mulher. A relação familiar, de pessoa para pessoa, deve ser de amizade e fraternidade: Não cobiçarás.

O DEUTERONÔMIO:

Esse livro é como uma avaliação da comunidade. Fracassou o Povo de Deus e agora está se perguntando: Por quê?

O Deuteronômio apresenta em forma de leis o que deveria ter sido feito e não foi feito, e por isso a sociedade está toda desmantelada:

Deuteron. 21, 18-21: o filho rebelde.

Deuteron. 22,13 até 23,1: a relação entre homem e mulher é sagrada, não se brinca com a relação sexual.

Deuteron. 24,1-5: o divórcio e o dever do casado.

Levítico 20,8 -21: o bom relacionamento entre parentes faz crescer a família, do contrário tudo desmorona.

Tudo o que está acontecendo foi por esquecimento da Palavra de Deus, palavra orientadora(Torá), esquecimento tanto por parte do Rei como de todos os Israelitas.

O TEMPO IDEAL DA VIDA TRIBAL:

Algumas pessoas vão lembrar também a forma como viviam os antepassados, não por saudosismo, mas para lembrar as características da verdadeira vida familiar na perspectiva do Projeto de Deus.

Lembram que a família patriarcal tem seu esteio no pai de família, assim FAMÍLA se diz “CASA PATERNA” ( bet’ab) O parente mais próximo de uma pessoa é o seu tio paterno (Levítico 25,49)

A família é no mesmo tempo comunidade de sangue e comunidade de habitação. A família é uma casa e fundar uma família diz-se: “construir uma casa”(livro de Neemias 7,4)

A família compõe-se também de servos e servas, de estrangeiros, de viúvas e órfãos para os quais o chefe de família dá proteção. A família assim entendida forma um clã (mispahah) O clã tem interesses e deveres comuns e seus membros são conscientes dos laços de sangue que os unem, por isso chamam-se de irmãos (1º Samuel 20,29.)

A vida religiosa é também vivida a nível familiar: a festa da Páscoa é celebrada no âmbito familiar (Êxodo 12, 3 e 4 e 46) Elcana vai com sua família, todos os anos, em romaria até o santuário de Siló (1º Samuel 1,1-3)

Desse tempo da vida tribal, duas leis, que defendem a família, são também lembradas: a lei do levirato (Deuteronômio 25, 5-10)

a lei do vingador do sangue (Go’el ou redentor, Levítico 25,47)

Quando, na volta do exílio, se tratará de reestruturar o povo e conseqüentemente as famílias, o livro de Rute lembrará a existência destas duas leis antigas.

O DIREITO DO REI NÃO É O PLANO DE DEUS.

Os que escreveram os capítulos 2 e 3 do livro de Gênesis tinham também a preocupação de lembrar o verdadeiro sentido da família segundo o plano criador de Deus.

A situação descrita em Gênesis 3,16-19, é igual à situação criada pela Monarquia, mas por que é assim? Porque alguém quer se igualar a Deus (Gênesis 3,5) e determinar o que é bom e o que é mal, em outras palavras fazer a sua própria lei.

Segundo o plano de Deus, homem e mulher são iguais (Gênesis 2,21-24: ish=homem, isha= mulher.). Eles formam um grupo (família) porque não é bom ficar só (Gênesis 2,18). Mas o direito do Rei, que agora determina o que é bom e o que é mal, desajustou tudo: a sociedade, as famílias que formam essa sociedade.(Isaías 5,20)


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