terça-feira, 11 de maio de 2010

Os dois sacramentos da presença de Cristo











1. Ir ao encontro de Deus.


Retirar-se é um momento de encontro consigo mesmo e com Deus. Como o Profeta Elias que precisava se encontrar consigo mesmo porque não tinha mais coragem de continuar a sua missão, mas queria também encontrar-se com Deus, pois precisava encontrar o Deus pelo qual havia dado a sua vida. Por isso voltou às fontes de sua fé e do seu compromisso como membro do Povo de Deus. (1o Reis 19, 1-18).
Ele pensava conhecer a Deus, mas descobriu que Deus não estava no barulho e sim na brisa leve. Estamos aqui para escutar, descobrir novos rostos de Deus. Não sabemos tudo, pois Deus é insondável, nunca acabaremos de conhecê-lo.
Ao descobrir a presença de Deus numa brisa leve, Elias acabou descobrindo que Deus está na fragilidade, sua força manifesta-se na fraqueza e, sobretudo, nos fracos, nos pequenos, nos abandonados de sociedade.
Assim nós, viemos até aqui para nos encontrarmos com Deus e nos renovar na nossa fé no Deus Único, e no nosso compromisso como batizado e como vicentino.
O encontro se dá na oração e no silêncio, na contemplação tanto do rosto de Deus como de nossa vida: fé e vida, oração e ação, pois depois, trata-se de voltar para continuar a missão como Elias foi mandado de volta para junto do Povo.
Vamos contemplar os dois sacramentos da presença do Cristo vivo.

Para nós cristãos, Deus se revelou plenamente em Jesus de Nazaré: “Ninguém jamais viu a Deus; quem nos revelou Deus foi o Filho único, que está junto no seio do Pai”(João 1, 18) “Quem me viu, viu o Pai”. (João 14, 9).
Por isso vamos lembrar e contemplar a pessoa de Jesus, como os Evangelistas nos deixaram o seu rosto e suas atitudes.

Vicente também caminhou na sua vida para encontrar o Deus vivo e verdadeiro. Ordenado sacerdote ele busca benefícios bons, cuida dos seus interesses. Em Paris, ele descobre a diferença entre a realidade e as aparências, foi introduzido no mundo da marginalidade, o mundo dos que sabem recorrer a Deus. Mas continua procurando um serviço bem remunerado. A sua experiência como pároco de uma paróquia pobre da periferia de Paris, o leva a descobrir o sentido do sacerdócio, centrado no dinamismo da encarnação de Cristo, enviado pelo Pai para salvar os homens, quer dizer não de um Cristo separado dos homens e perdido na contemplação do Pai, mas vivendo para esses homens na solidariedade e fraternidade com eles.

Com Vicente, com Elias, vamos nesse retiro ao encontro do Deus vivo e verdadeiro para renovar as nossas energias espirituais, para fortalecer nosso compromisso com os mais necessitados, que queremos servir como Vicente e Frederico Ozanam.


2. Jesus, encarnação do Pai.

“E a Palavra se fez carne e habitou entre nós” (João 1, 14).
Ele veio morar junto de nós. Nosso Deus é um deus que desce. Descer ao encontro de Deus. Ele não reteve ociosamente sua condição divina, mas se esvaziou e se fez um de nós, servo entre os servos (Filipenses 2, 5-11).
Essa encarnação de Deus, em Jesus de Nazaré, se deu entre os pobres, na periferia de Jerusalém, em Belém da Judéia. Dos 33 anos de vida de Jesus, Ele passou 30 em Nazaré da Galiléia, “o que pode sair de bom de Nazaré?” (João 1, 46). A Galiléia é a Província dos Pagãos, região descriminada pelas autoridades judias. A Galiléia, periferia geográfica da Palestina dessa época. Bom é a capital, Jerusalém: “Tu deves sair daqui e ir para a Judéia, para que também teus discípulos possam ver as obras que fazes. Quem quer ter fama não faz nada às escondidas. Se fazes essas obras, mostra-te ao mundo” (João 7, 3-4).
Como no antigo Testamento, Deus se revela em Jesus de Nazaré como uma brisa leve. Nada de glorioso, nada de espetacular (foi uma das tentações).
Foi a opção de Jesus, permanecer sempre junto aos mais empobrecidos, os excluídos do seu tempo, ao ponto de escandalizar as pessoas de boa reputação: “eles freqüenta os pecadores, senta-se à mesa com as pessoas em situação irregular, ele é um beberão e um comilão...”(Mateus 9,11; 11, 19).
Foi também nos empobrecidos do seu tempo que São Vicente encontrou Deus. Ele estava inquieto, buscava a Deus, até o dia que o encontrou na pessoa dos pobres. Ele se dedica à evangelização dos pobres do campo, abandonados pela Igreja. Ele descobre que a Igreja de Jesus é a Igreja dos pobres. A missão da Igreja tem um ponto de referência chave: a evangelização dos pobres. Por isso o discípulo de Jesus é uma pessoa desprendida de tudo, a serviço dos mais necessitados.
Vicente procurou a Deus e encontrou os pobres. Porque é junto dos pobres que se encontrou Deus.
Vicente de Paulo prefere conhecer a Deus pela forma na qual Ele próprio se manifestou ao longo da história. Por isso recorre à história e à sua própria história, para saber como é que Deus lhe manifesta o que ele é e o que faz. E de maneira particular recorre aos pobres para descobrir o que é que Deus e seu Filho, Jesus de Nazaré, disseram a respeito dos pobres, como optaram por eles e, conseqüentemente, como a Igreja de Jesus Cristo tem de ser a Igreja dos pobres. Nesses acontecimentos encontrou certamente os pobres, descobriu-os, e neles descobriu e encontrou igualmente Deus. Mas sobretudo depois desses acontecimentos estamos diante de um livre. Livre para Deus e para os pobres. Agora ele só tem diante se si um caminho: os pobres. E haverá de segui-lo. Ao fundar a Congregação da Missão, Vicente declara: “Quero uma Companhia que tenha por herança os pobres e que se dê inteiramente aos pobres”.


3. Jesus, revelação da misericórdia do Pai.

O fato de Jesus estar sempre junto aos mais abandonados e rejeitados da sociedade, já é, em si, uma Boa Nova (evangelho).Foi para eles que Ele foi enviado em primeiro lugar (Lucas 4, 16-21). Não esqueçamos que esse versículo do livro de Lucas foi escolhido por São Vicente como lema de sua Congregação da Missão.
Mas Jesus não se satisfaz somente com a presença silenciosa, Ele age em favor dos empobrecidos. Sabemos quanto os Evangelistas guardaram as ações de Jesus que mostram o seu amor e seu carinho para com os mais desfavorecidos.
Jesus acolhe os doentes: cegos, leprosos, coxos, possessos, até os mortos a quem Ele devolve a vida. São os sinais que comprovam que o Reino de Deus já chegou, chegou o tempo do Messias (Mateus 11, 2-6).
Jesus reintegra os marginalizados do sistema social, na comunidade social e religiosa: é o caso do leproso (Marcos 1, 40-45). Ele dá valor os que são considerados como pecadores públicos (coletores de impostos, prostitutas, estrangeiros...).
Jesus acolhe as mulheres que eram desprezadas e lhes devolve o seu direito de filha de Abraão. Ele até afirma e assim faz que elas são discípulas como os homens!
Jesus acolhe também as crianças que até a idade dos doze anos eram considerados sem importância. Não somente as recebe mas afirma que quem não se torna como uma delas não poderá entrar no Reino de Deus.
Vamos contemplar de mais perto dois textos que nos mostram a importância do empobrecido: Marcos 3, 1-6 e Lucas 13, 10-17.
O verdadeiro culto que agrada a Deus é quando celebramos a vida na defesa e no reergueminto dos mais pobres. Nos dois textos estamos na sinagoga (lugar de culto), num dia de sábado (dia do Senhor). Lá se cultuava a Deus pela leitura das Escrituras e pelo canto dos Salmos. Para Jesus esse culto não tem sentido, enquanto tem necessitados à porta esperando por vida e vida em abundância. O verdadeiro culto a Deus é a vida, como afirmava Santo Ireneu: “A glória de Deus é o homem vivo”.
O primeiro sacramento de Cristo Jesus no meio de nós é o pobre. Assim nos lembra também o evangelista Mateus no texto tão bem conhecido do Juízo Final: “Quando te encontramos Senhor, quando você ajudou um faminto, um sedento, um maltrapilho, um preso, um migrante, quando ajudaram um desses pequeninos meus irmãos: ERA EU”. (Mateus 25, 37-40). Vamos reparar com muita atenção como as palavras que marcam a presença de Jesus são as mesmas que, mais adiante, vamos encontrar na última Ceia. Os empobrecidos são o corpo do Senhor, como o pão e o vinho da Eucaristia. Tocar neles, é tocar nEle.
A grande Assembléia de Puebla nos lembrou os rostos desfigurados dos pobres desse nosso Continente: rosto dos indígenas (Campanha da Fraternidade desse ano), dos lavradores, dos operários, dos idosos (Campanha da Fraternidade do próximo ano), dos jovens entregues às drogas, das crianças abandonadas.
Vicente sempre repetia: “Tudo o nosso querer fazer consiste na ação. O verdadeiro sinal do amor de Deus é a ação boa e perfeita”.

4. Jesus deixa o sinal de sua presença e de sua ação.

Estamos muito acostumados a reconhecer e adorar de modo todo especial a Jesus sacramentado. A Eucaristia ocupa um lugar central na vida dos cristãos. Há, até, uma certa inflação de culto eucarístico. Será que o desejo do Senhor, ao nos deixar esse sinal, esse sacramento de sua presença foi bem este?
Os discípulos de Emaus reconhecem o Ressuscitado ao partir do pão. Era, provavelmente, um gesto costumeiro de Jesus, Ele tinha uma maneira especial de dar graças e romper o pão entre os seus discípulos. Mas, então poderíamos nos perguntar em que a maneira de fazer do Mestre tinha algo de especial.
Vamos recorrer ao Evangelista Marcos, no capítulo 6, versículos 34 a 44.
A compaixão de Jesus: são ovelhas sem Pastor, Jesus vai assumir a função
do Pastor (Salmo 23: mesa, relva, conduz...).
Vai mandar recolher o que se tem: ele não dá de mão beijada, tem que
participar com alguma coisa.
Ele organiza o povo: sentados por grupos de cem e cinqüenta...
“Tomando os cinco pães e os dois peixes, elevou Ele os olhos aos céus,
abençoou, partiu os pães e deu-os aos discípulos para que distribuíssem”.
Notamos como são as mesmas palavras da última Ceia, com a instituição
da Eucaristia. Antes de celebrar a Eucaristia, temos que aprender a
repartir o pão.
Essa é a grande lição dos pães: “ Não tinham entendido nada a respeito
Dos pães, seu coração estava endurecido”. (Marcos 6, 52).

O Evangelista João não relata a Instituição da Eucaristia na Última Ceia do Senhor, mas guardou um outro gesto, que tem a mesma importância que é o “Lava-pés”. Como a partilha do pão, o lava-pés lembra a prática de Jesus em favor dos empobrecidos: “Eu não vim para ser servido e sim para servir”(Marcos10, 45). O interessante é que no livro de João não encontramos as “Bem Aventuranças”, mas temos no fim da narração do “Lava-pés”uma Bem Aventurança: “Eu lhes dei um exemplo; vocês devem fazer a mesma coisa que eu fiz . Se vocês compreendem isso, serão felizes se o puserem em prática”(João 13, 15-17).
Celebrar a Eucaristia é celebrar a memória do mistério da Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor Jesus. É celebrar o dom da vida, como serviço para que todos tenham vida e vida em abundância.
A Eucaristia é um sacramento, isto é, um sinal: sinal da vida doada a serviço do bem maior de todos sem distinção, sem discriminação. Mas se é um sinal, para ser carregado de significado, deve corresponder à realidade. Não podemos aceitar um corte entre a vida e a celebração litúrgica, entre a fé e a vida.


5. Descer ao encontro de Deus.

O dia em que Vicente de Paulo quebra a laje que o sepulta em si mesmo e se entrega a Deus presente nos pobres, Deus o inunda com uma luz nova. No dia em que Vicente de Paulo se compromete com Deus para servi-lo na pessoa dos pobres, encontra o deus vivo e verdadeiro; descobre o evangelho daquele que, ungido pelo Espírito, foi enviado aos pobres para proclamar o ano da graça do Senhor.
A decisão de dar-se a Deus durante toda a sua vida no serviço aos pobres, fá-lo sair da pequena periferia em que se move, são “os assuntos de Deus” para os quais dedica a sua vida.
Vivemos esse pequeno encontro com deus, o Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo. Foi muito bom, como na montanha da Transfiguração com Pedro, Tiago e João, ou no Monte Sinai com Moisés e Elias. Mas é preciso descer da montanha, é preciso agora ir ao encontro desse Deus vivo e verdadeiro, presente na pessoa de nossos irmãos e irmãs mais desfavorecidos e abandonados, na presença sacramentada do seu Corpo e Sangue doados para a Salvação de todos, isto é para que todos tenham vida e vida em abundância.
É a grande lição de espiritualidade que recebemos de Vicente de Paulo: “Podeis crer me, é uma máxima infalível de Jesus Cristo, que de sua parte vos tenho anunciado com freqüência, que, uma vez que um coração está esvaziado de si mesmo, Deus o enche. Deus o habita e age nele. E não seremos então nós que agi, e sim Deus em nós, e tudo haverá de correr bem.
O segredo que São Vicente nos confia no fim desse pequeno retiro, é o mesmo que confiava aos seus irmãos: “A melhor maneira de garantir a nossa felicidade eterna é viver e morrer no serviço aos pobres, nos braços da Providência e numa renúncia a nós mesmos para seguir Jesus Cristo”. Eis aqui as cinco palavras chaves da experiência de fé de Vicente de Paulo: serviço, pobres, Providência, seguimento, Cristo.
Para tal, temos que fazer como São Paulo fez também e lembra aos cristãos da cidade de Filipos: “O que para mim era vantagem, por causa de Cristo considerei perda. Mais ainda, considero tudo perda em comparação com o superior conhecimento de Cristo Jesus; por Ele dou tudo como perdido e o considero lixo, contanto que eu ganhe Cristo, e esteja unido a ele”(Filipenses 3, 7-8).
Vamos evangelizar, isto é anunciar a Boa Nova da vida para todos e vida plena (a pessoa toda e toas as pessoas), mais sem nunca esquecer dos empobrecidos: “Então Cefas (Pedro),Tiago e João apertaram a mão a mim e a Barnabé em sinal de solidariedade ( de comunhão), para que nós nos ocupássemos dos pagãos e eles dos judeus. Somente pediram que nos lembrássemos dos pobres, questão que me esforcei por cumprir”(Gálatas 2, 9-10). A comunhão na obra do Evangelho é a preocupação pelos empobrecidos, é isso que une todos os que trabalham na evangelização, qualquer que seja a maneira, o lugar e as pessoas para as quais se dirige. Enquanto tiver um pobre na terra, quem fez a experiência do verdadeiro Deus, nunca poderá sossegar.

Pe. Francisco Rubeaux, OMI