ESPIRITUALIDADE DA SEMANA SANTA.
É bom entrar na espiritualidade dos primeiros cristãos. Como eles releram os acontecimentos dolorosos e os fracassos dos últimos dias da vida de Jesus de Nazaré? Como eles podiam testemunhar da fé num Ressuscitado que tinha sido crucificado? Todos conheciam o livro do Deuteronômio que afirma: "Maldito aquele que morre pendurado a árvore" (Deuteronômio 21, 22-23). Como pregar um Cristo (Messias) crucificado, escândalo e loucura para os sábios e entendidos? (1a carta aos Coríntios 1, 22-23).
1. O livro dos Atos dos Apóstolos guardou para nós um pouco desta reflexão e meditação que ajudou os discípulos e as discípulas de Jesus vencer o desespero, e iluminar a derrota como uma vitória (podemos ler também Lucas 24, 13, os discípulos de Emaús)).
Pedro retoma o Salmo 16, 8-11 em Atos 2, 25-28
O Salmo 118, 22 em Atos 4, 11.
O diácono Filipe catequiza o eunuco (Atos 8, 30-33) a partir de Isaías 53, 7-8
Assim fizeram os Evangelistas: Mateus 27,46; João19, 24 (Salmo 22,19)
Os textos do Antigo Testamento que mais voltam são o Salmo 22 e os quatro cantos do Servo Sofredor.
2. Vamos individualmente reler o Salmo 22 e notar tudo o que deste Salmo pode lembrar momentos da Paixão e Morte de Jesus. Momento de silêncio e de oração pessoal.
3. Um outro texto que marca a espiritualidade da Semana Santa é o chamado hino cristológico da carta de São Paulo aos Filipenses. Vamos reler juntos este texto: Filipenses 2, 5-11.
Canto: Salve, ó Cristo obediente (CD Tríduo Pascal I n.12)
O texto descreve o caminho de salvação realizado em Cristo Jesus:
vers. 6: "Ele tinha a condição divina, mas não se apegou a sua igualdade com
Deus". A primeira atitude de uma espiritualidade é o desapego ao
que somos, ao que temos direito legítimo de ser ou de ter. Jesus
nunca reivindicou a sua condição de Filho de Deus, foi até uma
tentação! Se apegar é se agarrar com força, não querer entregar.
Este desapego é também chamado de humildade: da
palavra "humus", a terra. Ser humilde é ter os dois pés no chão da
realidade, não querer ficar nem mais alto do que é e nem mais baixo
que então seria a falsa humildade...
vers. 7: "Pelo contrário, esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de
servo e tornando-se semelhante aos homens. Assim apresentou-se
como simples homem". Esvaziar-se (Kénosis) é aceitar de perder
tudo o que me faz ser "eu". Nós somos tão convencidos de quem
somos ("vai ver quem sou eu!!!")
Jesus se fez "SERVO". Já falamos do Servo Sofredor. Aqui vale a
pena destacar no Evangelho segundo São João o "Lava-pés" (João
13, 3 a 17). Nós o retomaremos na Quinta Feira Santa, na Celebração
da Última Ceia.
O Evangelista a sua maneira nos apresenta o despojamento total de Jesus no ato do lava pés. Ele escreve: "Jesus se levantou da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a na cintura" (João 13, 4). Tirar o manto significa se despojar de sua condição de pessoa de destaque, perder a sua condição de superior e cingir a toalha é cingir a vestimenta do serviço. É bom notar que no fim Jesus retoma o manto, mas guarda a toalha. Ele termina com este conselho de vida para os seus discípulos: "Eu lhes dei um exemplo: vocês devem fazer a mesma coisa que eu fiz. Eu garanto a vocês o servo não é maior do que o seu senhor, nem o mensageiro maior do que aquele que o enviou. Se vocês compreenderam isso, serão felizes se o puserem em prática" (João 13, 15-17). É a bem aventurança da prática!
Jesus se abaixou (Kénosis) até os pés dos discípulos. Ele é o Senhor e
Mestre, e não perde esta sua dignidade de Senhor e Mestre, mas ele
mostra uma outra maneira de ser Senhor e Mestre: "Eu vim não para
ser servido e sim para servir e dar a minha vida em resgate para
muitos" (Marcos 10, 45)
O lava pés é como uma encenação do mistério da Encarnação e da Redenção (Paixão-Morte e Ressurreição). É um movimento de descida e de subida. É todo o mistério da vida de Cristo e portanto da vida cristã. Quem quer se elevar para participar da vida divina, deve primeiramente se abaixar, passar pelo mistério de Paixão e Morte.
A carta aos Hebreus nos afirma também que "embora sendo Filho de Deus aprendeu a ser obediente através dos seus sofrimentos" (Hebreus 5, 8). Obedecer é estar sempre á escuta da vontade de Deus (ob-audire). Jesus sempre foi atento à vontade do Pai: "Pai não a minha vontade e sim a tua" (Mateus 26, 39). Alias é assim que a mesma carta aos Hebreus descreve a Encarnação do Filho de Deus: "Eis me aqui, ó Deus, para fazer a tua vontade" (Hebreus 10, 7).
Em forma de conclusão:
Agora podemos entender porque as primeiras comunidades cristãs encontraram nos Cantos do Servo Sofredor de Isaías a chave de leitura da Paixão e Morte de Jesus. Ele deu, pelos seus sofrimentos, pleno sentido ao que o profeta escreveu quinhentos anos antes. Deus envia o seu mensageiro, o seu Messias (Ungido) não como um líder triunfante e poderoso, mas simples e humilde. Infelizmente é uma realidade que continua entre nós. Quantos são os povos sofridos hoje? Quantas pessoas ainda desprezadas, rejeitadas ou como dizemos marginalizadas e excluídas. Mas como afirmava com tanto vigor São Vicente de Paula: “Os pobres são nossos mestres!” É deles que podemos aprender e nos converter para não sermos nem opressor nem explorador.
Mas nós ainda hoje esperamos um Messias glorioso, estamos a fim de um Teologia da Prosperidade, até pessoas por aí afirmam que temos que esquecer e até abandonar a cruz. Jesus Ressuscitou! Mas não podemos esquecer que Ele ressuscitou passando pelo sofrimento e a cruz. A cruz continua para nós o sinal do amor total e sem limites de Deus por nós. "Tendo amado os seus que estavam no mundo ,ele os amou até o extremo(até não poder mais)" (João 13, 1). É a razão pela qual o Apóstolo Paulo escrevia com todo vigor: "Quanto a mim que eu não me glorie, a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, por meio da qual o mundo foi crucificado para mim e eu para o mundo" (Gálatas 6, 14).
A espiritualidade pascal é uma espiritualidade do Amor como Ele nos amou. Este foi o último desejo de Jesus:> "Amem-se uns aos outros como Eu vos amei" (João 13, 34-35).
E São João na sua primeira carta poderá concluir: " Se Deus amou com tanto amor, nós devemos também amar os nosso irmãos" (1a de João )
A espiritualidade destes dias santos é uma espiritualidade de entrega total de nós à vontade de Deus. Acolher a vontade do Pai na humildade e no espírito de serviço. Afinal é se esvaziar de nos mesmos para nos encher da Cristo: "Eu vivo , mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim. E esta vida que agora vivo, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregoiu por mim. Já não sou mais eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim" (Gálatas
Os quatro Cantos do Servo Sofredor segundo o Profeta Isaías.
Quais são os quatro cantos do Servo Sofredor?
O Povo de Deus está exilado na Babilônia. Com a ajuda do Profeta Ezequiel e de um discípulo de Isaías, eles repensam nas suas atitudes e como foram infiéis à Aliança com Deus. Mas continuam certos que tem uma missão no meios dos outros povos de testemunhar do amor infinito de Deus. Não será de uma maneira triunfante mas na humildade e no sacrifício. Assim nascem os quatro cantos do Servidor Sofrido.
1º Canto: Isaías 42, 1-7. Deus escolhe e apresenta o seu servo.
É Deus que toma a iniciativa e chama para a missão de servo o povo do cativeiro. Ninguém mais acreditava naquele povo, nem ele mesmo, só Deus! Este é o jeito de Deus agir e que encontramos em quase todas as páginas da Bíblia. Por meio desta escolha Deus mostrou a sua preferência, ficou do lado dos oprimidos. Mas porque esta escolha que tanto desconserta?
O servo nos é descrito nos versículos seguintes (Isaías 42, 2-4). Neste retrato transparece o valor daquele povo: apesar de machucado, ele não machucava; apesar de oprimido, não oprimia; apesar de injustiçado, não respondia com injustiças. Apesar de todo o seu sofrimento e desânimo, o povo resistia e não se deixava contaminar pelo jeito de viver dos seus opressores. Não se deixou roubar do seu sonho: uma sociedade fundada sobre o direito sem opressores nem oprimidos. Ora quem vive assim, mesmo que não saiba, é um anúncio vivo da Boa Nova que Deus tem para todos. Mesmo sem se dar conta da importância do seu testemunho, o povo do cativeiro já prestava ao mundo o serviço de Deus.
No Exílio, o futuro nasceu do povo pobre, oprimido e desanimado, que apesar de toda a desgraça continuou fiel ao direito e à justiça
Agora vem a missão que recebe de Deus, o serviço para o qual é destinado (Isaías 42, 5-6). Deus se apresenta como o Criador, e o povo poderá sempre contar com esta força criadora de Deus. Ele é Javé, o Deus sempre presente, Ele está sempre ao lado do povo para libertá-lo. Conforme a sua justiça, Deus chama o povo para ser servo, pois é este povo que está segundo o coração de Deus. O povo poderá sempre contar com deus na realização de sua missão. Ele tem consciência clara de ter o apoio de Deus, de estar agindo em nome de Deus, de estar respondendo aos anseios mais profundos dos homens.
2º Canto do Servo: Isaías 49, 1-6
Num primeiro momento o povo do cativeiro reagiu contra o chamado de Deus (Isaías 49, 14). Levou tempo para se convencer que Deus o chamava. Muitos até abandonaram a fé em Javé para assumir as maneiras de viver dos seus opressores, parece que dava mais lucro. Temos o reflexo desta mentalidade em alguns Salmos: “O que Deus tem a ver com tudo isto, se é que Elçe sabe o que se passa conosco. De que serve viver na honestidade? Para que serve guardar limpas as minhas mãos? Para mim chega, vou seguir o exemplo deles!” (Salmo 72, 12-15). A fé no Deus verdadeiro e não um ídolo qualquer, precisava ser recuperada, reaprendida.
Ao redescobrir o jeito de Deus agir, o povo ganha de novo força. Ele descobre que a sua resistência, mesmo fraca e aparentemente sem futuro, é na realidade o que Deus mais gosta nele: “Tu és o meu servo! Tu me trazes muita satisfação!” (Isaías 49, 3). O povo descobre que a sua vocação vem de longe, mas ele não percebia, vem desde o seio materno (Isaías 49, 1). O povo tem que voltar ao projeto inicial do tempo do deserto, quando Deus fez Aliança com os antepassados por intermédio de Moisés. É lá que se encontra o seio materno do povo, é lá que ele foi gerado como povo de Deus. Com os olhos fixos no verdadeiro Deus, o povo encontra de novo força e ânimo: “Fui levado à sério aos olhos do Senhor. Deus se fez a minha força!” (Isaías 49, 4).
Este projeto de vida é para todos os povos da terra e não somente para Israel. Ao começar a viver este projeto de vida, muitos vão se interessar, vai ser esperança para os oprimidos a qualquer povo ou país que eles pertencem. Por isso o segundo canto do Servo começa assim: “Ilhas escutem o que vou dizer! Povos distantes prestem atenção!” (Isaías 40, 1). A mensagem de Boa Nova é universal.
3º Canto do Servo: Isaías 50, 4-9
Agora o povo aceita e assume a sua missão de Servo de Deus. Ele passa à execução da missão. Libertado da imagem falsa de Deus que o impedia de enxergar a realidade com os olhos de Deus, de pensar segundo o jeito de Deus pensar, o povo agora pode escutar o apelo de Deus, descobrir a sua missão de justiça e de libertação, e já começa a executá-la, colocando-se a serviço de Deus e dos irmãos. Ele está atento ao Deus que o conduz, e aos irmãos desanimados que esperam dele uma palavra de conforto (Isaías 50, 4).
O Servo se define como “discípulo de Deus”. Ele tem plena firmeza na sua vocação e na sua missão, não volta para trás. Mas ele está sempre à escuta da vontade de Deus. Ele depende de Deus na execução da missão. Deus traça os caminhos, o Servo executa com o ardor e o entusiasmo de seu coração, e que brota de sua fé no Deus único e verdadeiro.
Olhando a realidade á luz da Palavra de Deus, o povo percebe o que está errado, toma consciência do seu dever como Servo de Deus e começa a transformara realidade de acordo com o projeto de vida recebido de Deus (sua missão). Mas os outros que se aproveitam da situação de exploração e opressão, não querem perder os seus privilégios, seus lucros e começam a reagir a até a perseguir o Servo. Na medida em que o Servo vai em frente, o sofrimento aumenta (Isaías 50, 7). Ele aceita a cruz como caminho de redenção e libertação. O sofrimento faz parte da prática da justiça e do amor.
4º Canto do Servo: Isaías 52, 13 até 53, 12.
É a paixão, morte e vitória do Servo. Como no primeiro canto é Deus mesmo que apresenta o seu Servo. O Servo de Deus derrotado pelo sofrimento, a ponto de não ter mais aparência de gente (Isaías 52, 14), será vitorioso, terá êxito (Isaías 52, 13). Isso não combina com o nosso modo de pensar. Não cabe nas nossas idéias! Como entender uma derrota que é vitória?
O Servo de Deus é, como já vimos, o povo do cativeiro, povo oprimido, sofredor, desfigurado, sem aparência de gente e sem um mínimo de condição humana, povo maltratado, desprezado, evitado pelos outros como se fosse um leproso, condenado como criminoso, sem julgamento e sem defesa.
Nesta desta situação dolorosa, o Servo vive dois grandes valores que são redentores e libertadores: o abandono e o perdão. Na hora mais difícil parece que até Deus nos abandona. Ele parece se retirar da luta e deixa o povo sozinho. Na realidade Ele continua presente, Deus da vida, defendendo e dando vida, a verdadeira vida, aquele que se ganha quando se perde tudo. Deus é o Deus dos vivos e não dos mortos. Neste momento de dor, o povo assume plenamente a sua fé, é dele mesmo e não de Deus, ele toma partido pela vida e oferece a sua vida para que todos tenham vida. Na hora de sofrer e de morrer, a forma de crer na presença do Pai foi crer no dom do Pai que é a vida. Foi crer que aquela sua vida crucificada, abandonada e torturada era mais forte do que o poder de morte que o massacrava. Esta foi e continua sendo a mais alta revelação que Jesus nos fez da presença libertadora do Pai em nossa vida!
Perdoar não é uma reação de recuo e de defesa diante dó mais forte, mas é uma ação criadora, provocado pela vontade de imitar a Deus, o Criador. O perdão vence a injustiça pela raiz, fazendo com que o injusto se torne justo, o inimigo se torne irmão e amigo. Perdoar é o caminho realista para a libertação de todos. O perdão destrói os muros da divisão e restabelece a fraternidade no fundamento da justiça e do direito. Assim o opressor reconhece sua culpa (Isaías 53, 4-6), reconhece que o sofrimento do povo foi causado por ele, e que foi por este povo sofrido que ele foi curado, salvo e liberto de sua situação de opressor.
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